domingo, 4 de fevereiro de 2007

O testemunho de "Épsilon"

Aritmética Racional, 1945

(...) É completamente inesperado você me pedir para indicar um pseudônimo, mas achei interessante você mencionar que uma das pessoas que você entrevistou escolheu o nome do Caraça. O Caraça desempenhou um papel importante na minha formação matemática. Existe em Portugal um boletim de divulgação de eventos matemáticos no qual cada número traz uma notícia sobre um matemático português e um professor de lá me pediu para escrever sobre o Antônio Monteiro. Eu escrevi e ele mandou uma carta agradecendo, dizendo que ficou muito bom e elogiou demais o texto. Eu vim a saber da existência do Antônio Monteiro através de um livro do Caraça. Quando eu comecei a dar aulas no Ceará eu procurei estudar um pouco mais de matemática e fui a um alfarrábio comprar livros antigos de matemática e lá me deparei com um livro muito estranho: começando pelo fato de que o livro estava em um alfarrábio, mas aparentemente nunca tinha sido sequer aberto porque as páginas ainda estavam dobradas; eu imagino que alguém comprou o livro e quando viu que era completamente estranho resolveu se desfazer dele. O livro se chamava Lições de Álgebra e Análise, de um autor chamado Bento de Jesus Caraça. Naquela época, que eu tinha 18, 19 anos, comecei a ler aquele livro. Eu o havia comprado por ser intrigante. À medida que eu ia lendo, um novo mundo completamente diferente se abria para mim. Era o mundo da conceituação matemática: conjuntos, números transfinitos, grupos, anéis... O livro não é uma maravilha, ele se estende demais, constrói os números naturais, reais com cortes e depois os complexos; tem uma parte completamente desconectada sobre matrizes e determinantes feitas de uma forma bem clássica, que quase nada tinha a ver com o que se viu antes. Mas ele me deixou fascinado com aquelas coisas: números transfinitos, e no fim de cada capítulo ele trazia um bibliografia em que mencionava vários livros com comentários sobre o conteúdo dos livros mencionados; essa bibliografia foi muito importante para mim porque, lá no Ceará, não existia nada de matemática naquela época. Hoje o Ceará é um centro de matemática muito relevante e eu tenho orgulho de dizer que eu contribuí para isso, inclusive, você vê ali na parede um diploma de professor honoris causa da Universidade Federal do Ceará, pelo trabalho que eu desenvolvi lá... Mas voltando: essa bibliografia continha indicações como, por exemplo, o livro do Hardy: Curse of Pure Mathematics, o A Survey of Modern Algebra do Garret Birckoff e Saunders MacLane, livros que eu mandei buscar em uma livraria no Rio de Janeiro. Eu os comprei por reembolso postal e estudei matemática sozinho, ou melhor, com o auxílio desses professores que são os autores dos livros. Foi por aí que eu aprendi matemática. Entre os livros mencionava-se alguma coisa do Antônio Monteiro, em particular a Aritmética Racional, que aliás está até aqui na minha estante. Esse é um livro muito interessante de aritmética que foi escrito para “alunos do liceu”. Eu desconfio que os alunos do liceu em Portugal fossem superdotados ou não entendessem nada daquilo. É um livro muito sofisticado. Elegantíssimo. (...)