terça-feira, 4 de setembro de 2012

Problemas da cultura matemática portuguesa


Problemas da cultura matemática portuguesa
António Aniceto Monteiro
(Professor da Universidade de San Juan, Argentina)


A caracterização da situação actual da cultura matemática portuguesa, o averiguar seus problemas fundamentais, determinar suas contradições, fracassos e debilidades, o determinar suas realizações e fundamentar suas esperanças, constitui um importante problema de carácter nacional. Trata-se de um problema de carácter nacional porque é um problema da cultura científica portuguesa e porque interessa o desenvolvimento da economia, o bem-estar social da população e a independência do país. Trata-se portanto de um problema de grande complexidade para o exame do qual se necessita da cooperação de um número considerável de estudiosos.
Uma das principais características da cultura matemática portuguesa é o seu atraso crescente em relação ao movimento matemático internacional, e é claro que esta situação é compatível com o desenvolvimento interno, mais ou menos lento, dessa cultura.
É de uma grande importância para o país a existência de estudiosos treinados nos métodos modernos do pensamento matemático, porque são susceptíveis de ser aplicados à resolução de variados problemas especiais que se apresentam em todos os sectores da vida. Trata-se de métodos potentes e fecundos de análise que podem conduzir o homem a conhecer a natureza para dominá-la e transformá-la em seu proveito e na perseguição de um tal objectivo o próprio homem necessariamente se modifica, como parte integrante da natureza.
Esta oposição entre o atraso crescente da cultura matemática portuguesa e a necessidade imperiosa do seu desenvolvimento rápido constitui um dos dados objectivos mais importantes do problema em estudo.
Os principais órgãos de difusão da cultura são as escolas superiores e é importante constatar que seus programas actuais de estudo não correspondem às necessidades do momento, devendo mencionar-se especialmente a organização da licenciatura em ciências matemáticas e as características dos respectivos doutoramentos. Nenhuma verdadeira vocação matemática pode deixar de ser diminuída perante uma tal orgânica de estudos, cristalizada em forma estável há dezenas de anos.
Os esforços que realizam alguns professores não alteram a situação de conjunto de tal licenciatura caracterizada por um conjunto rígido de cátedras de estudo obrigatório, com programas mais ou menos fixos, tudo sem nenhuma elasticidade, rígido e imóvel, sem contemplações pelas novas disciplinas que se vão criando e desenvolvendo. A tudo isto se deve agregar uma indiferença quase geral pelo pensamento original que se dissolve num ambiente hostil e sem estímulo, de onde resulta a ausência de bibliotecas matemáticas adequadas para o trabalho científico e de uma carreira para a investigação científica que encoraje as vocações.
Este panorama geral não sofre alterações, mesmo quando tivermos em conta certos factores construtivos:
– A actuação daqueles professores que, com o condicionamento referido, desenvolvem seus esforços com o objectivo de modificar a situação existente, dando o exemplo inestimável de uma vida dedicada ao estudo e ao ensino.
– A actividade do Instituto para a Alta Cultura que desde 1929 – quando se concretizou a sua criação, resultante de um vasto movimento de opinião que durou vários anos e que apontava o exemplo da Junta de Investigações Científicas de Madrid – tem fomentado o desenvolvimento dos estudos com a concessão de bolsas no estrangeiro e no país, criação de centros de estudo, subsídios a publicações, bibliotecas e laboratórios.
– O extinto Centro de Estudos Matemáticos de Lisboa, dependente do I.A.C., dirigido pelo saudoso professor Pedro José da Cunha com exemplar independência e seu grande carinho pelo desenvolvimento da matemática portuguesa, que encorajou um grupo de jovens a iniciar-se no trabalho de investigação.
– O extinto Centro de Estudos Matemáticos do Porto, dependente do I.A.C., dirigido pelo distintíssimo matemático Ruy Luís Gomes, a quem a cultura matemática portuguesa deve inestimáveis serviços e numerosas iniciativas. Constituía uma das maiores esperanças do movimento matemático português, com a sua eficiente orientação.
– A Portugaliae Mathematica e a Gazeta de Matemática, cuja publicação se deve à abnegação do Dr. Manuel Zaluar Nunes, a quem a cultura portuguesa fica devendo um exemplo do mais honroso merecimento e extremo valor – tem exercido conhecida influência no ambiente português e destacada repercussão internacional.
– A Junta de Investigação Matemática, que sob a direcção do ilustre matemático Aureliano de Mira Fernandes e de Ruy Luís Gomes, reúne estudiosos com o objectivo de fomentar os estudos matemáticos e promove publicações importantes, é uma chama em que vivem as esperanças de todos os que querem o florescimento da nossa cultura matemática.
Todas estas actividades, algumas das quais se interromperam por motivos extra-científicos com o consequente debilitamento da nossa cultura científica, constituem um destacado esforço de um pequeno número de estudiosos, para fomentar o desenvolvimento da investigação matemática, e se devemos reconhecer o merecimento de tão nobres actividades que alentam esperanças com fundamento, não devemos deixar de reconhecer que o panorama geral anteriormente referido se mantém, porque a direcção estratégica dos nossos estudos universitários não sofreu alterações.
Em nossa opinião, um dos problemas mais importantes da cultura matemática portuguesa é o da REFORMA DOS ESTUDOS MATEMÁTICOS. Seria necessário alterar substancialmente o quadro das disciplinas, a orgânica, a orientação dos estudos, os critérios da selecção e promoção do pessoal científico. Uma obra desta natureza não se improvisa, antes se prepara meticulosamente em artigos, debates, conferências e sobretudo com a formação de jovens investigadores com capacidade necessária para conduzir a cultura matemática portuguesa a um nível de tal natureza que a orgânica actual não possa subsistir. Sobre este ponto de vista os elementos construtivos a que nos referimos anteriormente têm desempenhado um papel fundamental, porque contribuíram, e continuam contribuindo, para a criação do ambiente geral em que as condições objectivas tornam possível e inevitável a transformação necessária. Podemos afirmar de um modo geral que a reforma dos estudos matemáticos é antes uma batalha em curso, do que uma batalha travada. Todos os insucessos devem ser considerados como temporários.
Creio que é de uma grande importância difundir a ideia de que toda a verdadeira reforma é o resultado de um esforço continuado e persistente, realizado por numerosos indivíduos, para atingir objectivos claros e bem definidos. A nossa juventude estudiosa tem, portanto, sobre os seus ombros uma pesada tarefa a realizar, e como os jovens estudantes de hoje serão os mestres de amanhã, neles devem residir todas as nossas esperanças e todas as nossas certezas.
Todos os esforços devem assim ser centralizados na preparação da juventude estudiosa para a investigação científica e para tal efeito é necessário criar a instituição que tenha esse objectivo específico.
Somos assim conduzidos a pensar que o problema principal do momento consiste na criação de um INSTITUTO PORTUGUÊS DE MATEMÁTICA que se dedique fundamentalmente à realização de trabalhos de investigação matemática e ao ensino da investigação matemática.
Esse Instituto deveria reunir o maior número possível de matemáticos portugueses com reconhecida capacidade para as tarefas referidas, seleccionados de acordo com o seu curriculum, e por ele deveriam ser contratados, em forma permanente ou temporária, especialistas estrangeiros que se tenham distinguido na formação de discípulos (sobretudo nos ramos de matemática que não são cultivados em Portugal). Ao mesmo tempo deveria ser criada uma carreira de investigador científico, com as respectivas promoções realizadas de acordo com os trabalhos de investigação publicados, e concedidas numerosas bolsas aos estudantes diplomados pelas Universidades e com vocação matemática.
Neste Instituto se formaria toda uma geração de estudiosos, de onde a Universidade deveria recrutar, no futuro, os seus quadros científicos. Se a criação de uma instituição da natureza que acabamos de indicar é de uma importância vital para o futuro da matemática portuguesa, e constitui uma velha aspiração do ambiente matemático português, não deixam de existir outras tarefas de grande importância como sejam a subsistência da Portugaliae Mathematica, da Gazeta de Matemática e das Publicações da Junta de Investigação Matemática, que se torna necessário assegurar por todas as formas.
A transformação da Sociedade Portuguesa de Matemática numa verdadeira Sociedade Científica, ampliando o número dos seus sócios, realizando Congressos Anuais para discutir os problemas do ensino secundário e superior, além das habituais conferências e comunicações, é outro problema que merece cuidadosa atenção, porque contribuirá para estimular os contactos pessoais, criando um ambiente de cooperação entre todos os matemáticos que é necessário concretizar. Essas reuniões, em que se procuraria congregar o maior número possível de matemáticos, deveriam ter um temário, tão amplo quanto possível, porque não existe nenhum aspecto da cultura matemática que não tenha o seu interesse.
Outro problema de primordial importância é o melhoramento do nível de vida dos matemáticos, sobretudo dos professores do ensino secundário e dos assistentes universitários.
A realização de cursos de férias, destinados aos professores para o aperfeiçoamento dos seus conhecimentos científicos, seria uma iniciativa de grande alcance, se fossem concedidas as facilidades de ordem económica indispensáveis.
De um modo geral o problema tem de ser encarado sob múltiplos aspectos, mas é claro que nunca devemos esquecer que o objectivo a atingir é a elevação do nível da cultura matemática portuguesa e que, portanto, a tarefa principal consiste em conduzir o maior número possível de estudiosos ao conhecimento do pensamento matemático moderno, encorajando aqueles que manifestem capacidade para o trabalho original.